Cláudio Pena

Cláudio Pena

         

 CLAUDIO PENA

          O BRADO QUE NÃO NOS ALCANÇA

 

          Carnaval

 

                     Apesar de muitos pularem o carnaval sem nenhum auxílio químico, da parte que nos toca, essa festa, para que não perca o seu fim dionisíaco deve ter certa irrigação vínica. Nessas noites de festa, na presença de Momo, é imprescindível que a mente seja auxiliada em seus voos irreais, coisa que não é a mesma sem algumas doses de fermentados e destilados. Que se deixe claro que estamos falando da verdadeira festa de Momo, adulta, e o que ela representa para a liberação dos desejos prisioneiros das convenções sociais durante boa parte dos dias do ano. No carnaval, feriados e dias santos também, pode-se ser o que se deseja ser e pode-se fazer o que é impossível fazer nos dias normais, graças ao clima da folia.

 

 

 

 

                                             Para sentir e viver o real estado do carnaval, estar só na multidão também nos parece mais apropriado, pois é quando o “ninguém é de ninguém”, grito de liberdade que habita nossas almas; é uma lei que abarca as mentes e faz jorrar dos corações uma espécie de alegria transbordante de significados. _Sou livre e o nosso canto contagia qualquer um! _ O frenesi dos corpos, a sensualidade exposta na rua, expulsa nossas angústias, nossos medos, nossas tristezas... O contato da pele, a eletricidade e o calor nos levam a regiões indescritíveis da mente humana. Saímos do racional e invadimos algo além dele... Esse é o significado dessa festa e não sei se ainda podemos encontrá-lo nos dias de hoje, talvez não! Outros tempos... Novos tempos aí estão que não nos permitem o acesso a técnicas profanas para se alcançar o Divino.

 

      

        

      

                                                  O HOMEM

 

 

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                                             Aconteceu num carnaval...Um coito relâmpago foi o que foi...Final de noite de samba na avenida...Apenas uma noite...Madrugada ao relento...Jovens corpos em mentes eclipsadas pelo vinho.

 

                                            

                                             Existem casais que tanto fazem para terem filhos. Anos de convívio e amor sem sucesso, no entanto em apenas uma noite e a vida se mostra sem problemas. Sem perguntas, o mistério é maior e mais fascinante...

 

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                                             E a criança foi rejeitada. Expondo dessa maneira o fato é abominável . Tem-se a ideia do abandono...Uma sarjeta e um bebê dentro de um cesto. Mas a rejeição veio na figura do pai somente, porque a mãe assumiu o filho, com todo seu amor de mãe.

                                             A exposição do fato é apenas a exposição do fato, não se tem a intenção de julgar ninguém. Quando se enxerga todos os lados, cantos e recantos de um fato, se descobre, não a canalhice do culpado, não a fraqueza do homem e suas atitudes, às vezes torpe,  mas o inevitável.

 

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                                             Houve uma razão para a rejeição, houve um motivo para aquela falta de amor e foi o próprio amor. É contraditório, mas é a verdade. O amor rejeitou o amor.

 

                                             

                                              Na madrugada daquele carnaval, o estado de alma que as almas estavam não tinha correspondência com o real estado das coisas desse mundo. Era carnaval! Estavam numa festa profana e tão sincera era a adesão àquele clima de orgia que, acima de suas cabeças, certamente, pairava alguma Divindade pagã...A raiz de tudo que faziam naquela noite estava em outro mundo...

                                            Quando o carnaval passou e a notícia da paternidade foi recebida nesse mundo de realidades efêmeras, a rejeição foi imediata.

                                            _Eu não posso me casar com você!

                                            _Mas eu não estou lhe pedindo nada. Só vim lhe trazer a notícia.

                                            Uma mulher nobre...Seria uma esposa fiel e terna companheira... Seria é passado! Já foi, passou. E assim aconteceu por causa do amor.

                                            Tentemos descrever o indescritível.

                                            O homem rejeitou a criança por amor a uma mulher.

                                            Amar uma mulher na real vida do cotidiano sem carnaval... Dá pra se ter a ideia da diferença entre os amores?

                                             Tudo que houve naquela noite de Baco, noite sagrada para a encarnação de uma alma. Tudo que aconteceu, aconteceu paralelo ao  que  já estava acontecendo no cotidiano daquele homem. Ele amava uma mulher, mas nos dias profanos da festa amou a si  mesmo e sua liberdade...  E foi aí que encontrou alguém que também se amava  e nisso, a liberdade tomou proporções que os arrastou para o clímax da festa, num bonito gramado de um jardim sob o sereno.

                                           A mulher que ele amava talvez estivesse também na sua liberdade, sob o reinado de Momo, sambando pelo país a fora... E isso, pra ele, não importava saber. Ela devia estar amando a si mesma e amando outros... Era carnaval!

                                           Mas quando o carnaval acabou... ela era a mulher que ele amava.

                                           _Eu não posso me casar com você porque amo outra mulher! Foi a explicação final para aquela jovem mãe. Nobre mulher que aceitou o seu destino. Aceitou seu destino e se foi da frente de quem a deixou, assim, sem adeus.

 

                                               lV

                                           Pode-se colocar e ora mesmo está colocado que o sacrifício, às vezes, é necessário. Seria o sacrifício de uma vida por uma vida. De uma vida adulta, que já sabe o que quer, por uma vida que nem havia visto a luz. Mas eram quatro vidas que se envolviam e não apenas uma e se aceitasse a situação, seria por conveniência. O amor nele estava na mulher que amava e não na criança que nem conhecia.

                                           Frio o cálculo que fez aquele homem... Homem asqueroso? Não! Homem apaixonado. O amor rejeitou o amor.

 

                                               V                        

                                           Remorso é um sentimento que sempre vem às almas sinceras em suas atitudes e buscas, pois o remorso existe para burilar a alma, conduzi-la a um estado de perfeição de que são capazes. Remorso é dor, mas dor salutar. A dor que a madeira sente quando é atingida pela ferramenta do escultor.

 

                                               Vl

                                          O homem sentiu o remorso... E a vida o levou a um lugar de expiação. Lugar de praia...Mar sem fim...Manhãs de reflexão... Areia sob os pés...Barulho de marés e ventos...Tentava se refugiar em leituras de livros, mas essas leituras só lhe trazia a sina de personagens à beira da loucura e da embriagues. Beira de cais...Cais de porto. Ele se embrenhava nas casas noturnas, boates, mulheres e muito álcool pra esquecer...As drogas...O perigo...Houve um dia que se viu em complicações com a lei. Mal sabia onde estava. A prostituição num cais de porto não é nenhuma diversão, só quem conhece essas bocas sabe do que aqui se diz.

 

                                         

                                          Foi para lá que a vida conduziu o homem, logo após seu ato de rejeição, rejeição do seu filho, e aquele amor responsável por sua atitude covarde, pois, apesar de sincera, foi uma atitude covarde; aquele amor se esvaeceu como fumaça de uma fogueira de gravetos...

                                         Morava num hotel de vinte e um quartos, onde só ele habitava num dos quartos. Morcegos sobrevoando as alturas...O prédio, em abandono, era fincado numa colina e das janelas dos quartos, via-se uma grande ilha, bela...Um bom lugar para reflexão.

 

                                               Vll

                                         Houve um momento em que ele comprou um livro sagrado _ A Bíblia_, e talvez aí, sob a inspiração de anjos do bem, sua vida começou a se voltar para a subida, a difícil subida de uma queda que nem tinha conhecimento, mas que estava clara para quem o enxergasse de cima como Deus o enxergava.

                                         Deus, para ele, ainda era um velho de barba nos confins de um céu distante, por isso ia ao encontro de Deus dentro das igrejas, que sempre encontrava vazias...Entrava, ajoelhava-se e num silêncio de prece, pedia perdão. Estava arrependido. Lágrimas sinceras escorriam lavando a culpa...Necessitava voltar para que a dor o deixasse . Voltar e assumir o seu filho. Essa era a atitude correta que sua consciência ia lhe soprando em cada lágrima...E quando isso ficou bem claro, quando enxergou que o amor por um filho importa mais que o amor de uma mulher, que um está subordinado ao outro, não teve dúvida, partiu daquele campo de sofrimentos, com uma só ideia...Casar com a mulher que não amava em sacrifício à vida daquela criança.

 

 

                                               Vlll

                                         Deixou atrás de si o mar e a maré, os ventos, os morcegos e as convenções sociais...Sua alma estava lavada.

 

                                               VlX

                                         Às vezes nos parece tudo muito simples, decidir coisas, tomar atitudes, saber do erro e tentar consertá-lo com decisões que surgem em nós; todas bem intencionadas, quando nos deixamos levar por um impulso, para nós tão límpido quanto um cristal...Mas a vida não é matemática, pelo menos não a matemática ordinária. Entre um ponto e outro existem infinitos pontos, entre minha face e a sua, o que nos parece vazio, está cheio de possibilidades...O que nos rodeia? Que brado não nos alcança somente por não captarmos um determinado comprimento de onda?

 

                                               X   

                                         Do ímpeto que recebeu, da compreensão do seu erro, o homem foi ver a mulher, mãe do seu filho, mas chegou tarde demais. Ela havia se casado. Casara-se ainda com o feto na barriga. Conhecera alguém de caráter que lhe propôs o ato solene de união.

                                         Desde então a criança teve um pai, e ele não podia interferir. Que direito tinha para exigir alguma coisa? Chegara muito tarde e se  tentasse encontrar alguma razão para interferir, a razão estava na própria vida que assim consentiu a situação.

                                         O que tinha a fazer era abdicar sua paternidade, pois outro homem foi quem participara do nascimento do seu filho. No meio da luz foi que a criança viu, quando abriu os olhinhos pela primeira vez, o seu verdadeiro pai - deixando a biologia de lado e aclamando o dito popular que “pai é quem cria”.

 

                                               Xl

                                         Voltou para o mar...As areias e os ventos fortes que lhes sopraram a canção do abandono.

 

                                               Xll    

                                         Uma questão pois, todavia, estava resolvida dentro dele e, se estava resolvida em seu íntimo, toda e qualquer tempestade que estivesse o mundo fora dele passando, não importava muito. Estava arrependido e isso importava, o resto eram lantejoulas da fantasia de um carnaval que uma noite ele vestiu.

 

                                               Xlll

                                         Mas ficou um vácuo do que fazer da vida...Vácuo diferente do vazio de outrora, onde o pecado lhe mordia a consciência. Ele se deparou com uma liberdade de movimentos, porém liberdade sem nenhum peso nos ombros. No fundo sentiu um esvaecimento de responsabilidades, responsabilidades que o matrimônio lhe traria. Estava livre... A vida o quis. Mas livre para fazer o quê? Pergunta perturbadora. E mais uma vez aquele Deus barbudo em que acreditava que dos confins dos céus lhe observava, trouxe-lhe uma resposta, vinda numa noite, quando sentado frente ao canal da grande ilha, barulho das ondas...maresia...perfume do mar...E de repente um andarilho aparece, num mutismo lerdo e parasita, apontando-lhe um objeto brilhante no céu, uma estrela enorme. De imediato, achou estranho aquele homem mau cheiroso, mas no estado de espírito em que estava interpretou uma mensagem. Serviria a Deus. Era isso que faria da vida. Não poderia ser de outra forma...Não poderia continuar a vida normal...Estava com um estigma para sempre...Um meio termo não tinha espaço em sua decisão.

 

                                               XlV

                                         Ver um maltrapilho, irmão desgraçado, vir a nós e nos indicar um caminho...As respostas estão em toda parte...

 

 

                                               XV

                                         Procurou uma congregação missionária e se refugiou...Fechou as portas para o mundo e se achando no caminho certo encontrou acolhida entre os irmãos de clausura. Estudo e oração...

 

                                        

                                       Esqueceu por completo aquela criança e sua mãe. Deixou que o passado os engolisse...Seu coração estava curado e aquela sina aconteceu somente para que ele se aproximasse mais de Deus...Aquele Deus barbudo...E distante...

 

 

                                               XVl

                                        Para quem era do mundo, deixar o mundo em breve passaria a ser um tormento. Entre os colegas de estudo e oração, desde o começo, não houve a simbiose. O isolamento foi a natural conseqüência de sua decisão.

 

                                       

                                        Passava horas pelos cantos daquele ambiente austero, às vezes, lendo a vida dos santos; outras vezes, preso em fugas mentais contemplando as nuvens. Foi nesse tempo que começou a rabiscar palavras, esboçar poemas sem intenção...Rimar abandono e solidão, em versos carregados de melancolia...

                                        Estaria mesmo no caminho certo?

                                        Seus companheiros pareciam felizes e vivos entre si...Nas orações em grupo podia-se ver a sinceridade nos semblantes...

                                        Por que não se dava o mesmo com ele?

                                        Por que uma inquietação fustigava seus nervos?

                                        As lembranças da vida mundana carregavam sua paz... Seu corpo não conseguia deixar de buscar outro corpo...Ele era homem e mesmo estando fora do mundo, sempre no mundo haveria de existir a mulher...

                                        Seria preciso a real vocação, a verdadeira chama interior para fazer dele um celibatário...Só o ambiente não bastava, era necessário a resposta do seu corpo...O sangue deveria estar preparado para suportar a transmutação da sexualidade, senão o tortuoso desvio dela seria fatal, e isso durante toda a vida. Enfim, não bastava querer ser, importava poder ser, estar preparado para...

 

                                               XVll

                                        Foi nisso que a dor voltou...Uma outra espécie de dor...Uma dor telúrica, vinda de suas entranhas, do seu sexo...A vontade do beijo, do toque...A velha dor primária de querer estar com alguém, alguém fora de nós e que nos complementa.

                                       Tentava lançar fora essa dor nas rezas que fazia ajoelhado frente a cruz do altar, distorcendo com isso sua natureza em contemplações momentâneas, alívios de consciência murmurados em palavras de louvor...Sufocava, sem transmutar, o seu instinto de procriação.

                                      A energia estava lá...Latejando, pulsando em seus poros e de onde estava, ele nada podia fazer para lhe dar uma direção correta que não furtivos escapes na hora do banho.

 

       

                                     

                                      A consequência disso só podia vir em forma de culpa.

 

                                               XVlll

                                      Era mais uma dor, dessa vez a dor moral.

 

                                               XlX

                                      Foi aí que numa noite, na clausura, percebeu dois olhinhos como faróis no escuro de um túnel, lançando luz em sua direção...Eram olhos de mulher, percebidos assim...Num repente...Numa fagulha de atenção, mas suficiente para provocá-lo...atiçá-lo...fazê-lo tremer e lançá-lo para longe do lugar onde estava.

 

                                     

                                      A mulher, porém, era uma devota da Igreja, não quis ser a responsável por desviá-lo do caminho. Aninhou aquele sentimento no coração e não deixou nenhuma promessa alimentar expectativas. Sabia que uma notícia daquelas seria uma boa manchete para comentários maldosos no seio da Igreja. Nas missas semanais, contentou-se com os olhos nos olhos e além disso, silêncio e distância.

 

 

                                               XX

                                      Uma revolta então se apossou dele. Revoltou-se contra a própria instituição. E aquela voz do Deus barbudo nos confins dos céus, para ele, perdeu o timbre e a afinação, sobrando uma rouquidão característica de um velho doente.

 

                                     

                                     Esse dia talvez fosse o primeiro em que se viu simplesmente humano, sem qualquer divindade que o acolhesse.

 

 

                                      HOMEM-POETA

        

                                               l

                                      O homem quando deixa Deus de lado é como a criança que deixa o brinquedo porque cresceu e já não precisa mais dele. O brinquedo, nem por isso, deixa de existir.

 

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                                       Fechou o livro sagrado que mantinha em sua cabeceira e como que impelido por uma energia diferente, partiu do claustro levando, além das roupas, seus versos melancólicos. Isso aconteceu à noite e às noites, desde então, foi que escolheu para viver...Deixava os dias claros de sol para dormir e nas escuras noites vivia...Noites em que lia muito dos grandes poetas e via que a vida desses grandes também tinha muita tragédia. Começou a se identificar...Todos falavam da solidão...Descobriu-se poeta...Descobriu-se no Limbo...Mas, até então, desse mundo novo, sedutor e noturno, ele ainda só conhecia nos livros e impunha conhecer de verdade...Importava ir ao encontro dos poetas nas tavernas, nos bares e senti-los próximos, eram seus iguais.

 

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                                        Assim o fez...

 

 

                                               lV

                                       Conheceu um que se dizia a reencarnação de Isadora Duncan. Bailava um bailado solto e despretensioso trazendo nas mãos uma foto da bailarina maldita, declamando com rigor e carisma poemas longos e sonoros, de sua autoria e de famosos. Pozinhos mágicos faziam sua delícia...

                                        Outro, era Baco, o deus do vinho...Apolo-Dionízio como dizia quase em transe alcoólico. Morreu com o próprio vômito, só e no abandono da madrugada, num pobre quarto sob o olhar de Beethoven, um busto de argila que lhe servia de companhia. Escreveu um livro de poesias... Publicação simples que distribuiu aos amigos antes da tragédia. Poeta maldito, como Baudelaire e Edgard Allan Poe.

                                         Havia filósofos tântricos e pintores surreais... Poetisas que publicavam livros para um público burguês, amante de poesias,  adversas à poetas...

                                         Havia o vinho, delicioso néctar...

                                         Havia a música e os cantores...Os apaixonados e o frenesi da multidão boêmia...Às vezes um surto de alguém que passava aos gritos pelas ruas...

 

 

                                        

                                         Loucos, poetas e apaixonados, esse era o universo que o nosso homem conheceu, logo após sua revolta...Um universo sem Deus...de seres humanos somente, que buscam um pouco de prazer para esquecer as mazelas do mundo.

 

 

 

                                               V

                                         Fora desse universo conheceu um poeta diferente, que não saía pelos bares e nem se embriagava jamais; mais sábio que poeta, e o conheceu numa curva...

                                         A vida tem curvas, bifurcações e precipícios...

                                         O conheceu numa curva...E sentiu as mãos em seu ombro como a guiá-lo...Deixou-se guiar, pois se não o fizesse, sairia da estrada e para a perdição não faltava muito. Seria mais um poeta maldito... E poetas malditos suportam dores muito atrozes...Pensem na morte vinda de um vômito! Deixou-se guiar, numa 'guiança' não declarada...Ideias eram lançadas, autores mencionados, em curtos encontros, numa chuva de indicações, de sinais, de conselhos indiretos que ele, por Deus, compreendeu.

                                        A vida noturna seduzia todo e qualquer jovem poeta, mas a poesia maldita não era pra qualquer poeta...Embrenhar-se pelos bares, ruas, favelas, bocas, onde o submundo palpita, cavar uma trincheira na mesa de um bar e lá cantar suas tragédias e misérias, todos que mergulharam nessas águas se afogaram e os que ainda vivem sabem que estão perdidos...

 

                                               Vl

                                        Deixou-se guiar...Deixou-se conduzir lendo autores que foram decisivos em sua vida.

 

                                               Vll

                                        E o tempo passava na velocidade dos tempos, veloz e neurótico...Apocalíptico. O mundo ia dizimando os seres...Diariamente, sabia-se da morte...Fazia-se entender que a vida não importava...E quinze anos havia se passado desde aquele carnaval....

                                        Onde estaria o seu filho? Às vezes o pensamento brincava com suas recordações. Eram pensamentos sem remorso algum, cogitações de poeta...

                                      Por onde andaria a vida, fruto do seu sangue? Eram rápidos lampejos, fulgurações que vinham e passavam sem maiores demoras...Sem lhe cobrarem nada...

 

                                               Vlll

                                      Um dia, porém, sempre haverá um dia assim...Era mais uma tarde, ia de passeio pela cidade, quando vê uma mulher, negra-mulata e a conhece...Elegante, altivez de nobreza no porte, olhar sereno e iluminado, olhar maduro, que chama só quando quer chamar...Quinze anos e, somente após quinze anos, sem vê-la, nunca mais, ali, em sua frente, a mulher de sua vida daquele carnaval!

 

                                     

                                      Ele só quis uma coisa, poder encontrá-la a sós, que não no centro da cidade, e então marcaram...Tinham muito que conversar...Ela estava só.

 

                                               lX

                                      Sabe lá o que é a atração da pele em jovens afins? Agora, porém, não eram mais jovens, nem velhos, no entanto, e a vida reclamava sua continuação...Estando a sós, compreenderam o porque há quinze anos o inevitável acontecera. A eletricidade do seus corpos era coisa de magia, se hoje não se soubesse sobre a ciência dos elétrons...O contato dos lábios e o desejo mútuo de nudez para criarem evoluções no espaço de um quarto...Tudo explicava, eram provas para um amor que não tinha como não existir.

 

                                               X

                                      Ele soube que a criança estava já um adolescente e que precisavam se ver, às escondidas, porém, marido ciumento sempre existiu. Soube também que nenhuma gota de rancor havia. Jamais, ela sentiu-se abandonada...Sabia ler os sinais...  Que se houvesse alguém que perdera alguma coisa, esse alguém era ele. Ele perdera o espetáculo da vida. De uma vida tão especial e que precisava conhecer, mesmo agora, mesmo sem ter participado dela.

 

                                               Xl

                                     Perder o espetáculo da vida...Os primeiros dias... Os primeiros passos...A primeira sílaba compreensível que sai assim tão espontânea...Todo o encanto infantil de uma criança...

 

                                               Xll

                                      Mas ele não sentia que perdera nada, encontrava-se em paz, e talvez o único tormento fosse esse. Seria necessário alguma expectativa? Há quinze anos voltara a uma reconciliação que a vida não quis, por isso, ora estava quite com ela. Errara o primeiro movimento, no segundo, passara pelo arrependimento e no terceiro, quando tentou fechar o triângulo, viu-se fora da base, base que não lhe deixou escolha.

 

 

                                               Xlll

                                      O encontro foi num parque, num lugar afastado da cidade...Dois estranhos e uma mulher entre eles, mãe e amante. Não houve muito ou nada a dizer...Silêncio perturbador...Como se estivessem, cada um no lugar errado, na hora errada, tentando conduzir uma história, cujo enredo não fosse deles, tentando plagiar alguém...O fatalismo talvez.

 

                                               XlV

                                      Esse foi o primeiro e último dia que viu aquela criança.

 

                                     

                                      Se voltarão algum dia? Ao homem-poeta o surpreendente é o que é, sem cogitar o que foi, nem o que será.

 

 

                                      HOMEM-SOL

 

                                               l

                                      De toda essa saga...Carnaval fatídico, rejeição covarde, salutar remorso, desencontro, fuga sob a cruz, paixão expulsando a batina, poesias malditas...Toda essa parábola de quinze anos serviu para o homem se descobrir poeta, elevar-se acima da multidão, sair da banalidade da vida comum...Era como se ele compreendesse tudo. Foi quando se casou.

 

                                               ll

                                      Casar é a forma de dizer uma coisa que aconteceu sem nenhuma formalidade, nenhum papel ou religião. Há quem diga que isso não é casar de verdade, para ele no entanto, bastou ter encontrado alguém que também não dava importância a formalidades. Os cartórios estão abarrotados de papéis e assinaturas, só para aliviar o medo das perdas e danos...Para a união de almas afins basta o encontro, em si grandioso, a ternura, o olhar, o carinho de dias inteiros e noites de amor...O cotidiano de pequenas atenções mútuas...Café na cama de vez em quando...Se essas poucas situações se apagam da vida conjugal, que sentido se tem para continuar a farsa? Acaso pode algum juiz fazer manter esses pequenos milagres?

 

                                               lll

                                     Podemos substituir, casar-se por acasalar-se. O segundo verbo é mais aconchegante...O homem-poeta acasalou-se...A mulher era uma joia perdida e brilhante... Mulher de cristal, tal a fragilidade dos gestos, da musicalidade na voz e no abrir-se tímida aos raios quentes do Sol.

 

                                               lV

                                      Homem... Homem-Poeta... Homem-Sol...

 

                                               V

                                      Não brincava mais carnaval, celebrações como esta já haviam lhe dado o conhecimento necessário sobre os mistérios do corpo...os segredos do sexo...Havia chegado ao último dos seus segredos. O derradeiro enigma da sexualidade...Cheirar a fruta, sentir o seu aroma, mas não mordê-la jamais...A suprema compreensão.

 

                                               Vl

                                      À posto, frente a um jardim que plantara em seu quintal, compunha longos poemas festejando o verso livre...Imagens tomavam vida em múltiplas chaves, ganhando uma fluidez cristalina para o alto...

 

 

                                               Vll

                                      Nesses momentos, se voltasse o pensamento para o passado, encontraria lá a miséria de fugas sombrias por que teve que passar...Dolorosas escapatórias nos subterrâneos da existência, dispensáveis agora.

 

                                               Vlll

                                      Homem...Homem-Poeta...Homem-Sol... Evolução...O desenvolvimento progressivo de si mesmo...Sua vida, como um poema, ia sendo composta...

 

                                               VlX

                                      Quando se diz Suprema Compreensão, pensa-se que nesse ponto já não haja mais nada para se conhecer. E não há mesmo! É um ponto onde a mente perde todos os véus e é colocada diante do Vazio...As crianças e os loucos nos dão testemunho desse Vazio, em seus olhares...Aí a busca termina.

                                      O Homem simplesmente humano, nesse ponto, enlouquece...O Homem-Poeta, aí, alcança um profundo silêncio...O Homem-Sol desaparece na multidão como um louco, não sendo mais que uma criança.

 

                                      APÊNDICE

                                      Imaginem uma criança na multidão, aqui tocamos o Vazio com suas próprias leis...Se disser que um imenso pássaro acolhe esta criança em suas garras, levando-a para longe, além de um Arco-Íris, numa terra fantástica, logo se pensa onde é que fica este lugar...Mas é um lugar além da mente...Não se pode pensar em nenhum lugar de nosso espaço de montanhas e rios...É o lugar do Vazio...

                                      A criança da multidão, quando penetra a multidão, já é pega pelo pássaro, como se a própria multidão não fosse mais que um passaporte para uma outra terra...    

 

 

                                                                                                                                   

                

Artes Gráficas: Leandro Persa